Novas formas de trabalhar: mito ou realidade?

 

Faz praticamente três anos que lancei o meu livro “WoW – Novas formas de trabalhar” e embora tenha terminado com uma mensagem de esperança, a acreditar que tínhamos verdadeiramente uma oportunidade para nos reinventarmos e trabalharmos todo o ecossistema das organizações, aumentando a produtividade e a felicidade das pessoas, hoje chego à conclusão que estas novas formas de trabalhar “cheiram a mofo”.

Não levem a mal a sinceridade e vou-me explicar. Continuo a ser uma pessoa positiva e a acreditar em cada linha que escrevi, mas vejo que ainda estamos longe do “novo” e mais ainda de aproveitar os diferentes modelos a bem das nossas pessoas e das nossas empresas. Mas comecemos pelo princípio.

A era AC/DC

Ponham no Spotify a música Thunderstruck e vivam a era AC/DC. Este hit de 1990 da banda rock australiana foi escrito por Angus Young, inspirado por um episódio a bordo de um avião que foi atingido por um relâmpago. A letra mistura as emoções de quem vive um evento único e se sente chocado e assustado ao mesmo tempo, o medo do fim e a adrenalina de um recomeço.

A era AC/DC – a era Antes do Covid e Depois do Covid – retrata o ano de 2020 que fomos para casa, que trabalhamos à distância, que aceleramos vertiginosamente a utilização de ferramentas digitais colaborativas, porque o mundo não podia parar. Ao mesmo tempo, todos nós tivemos o nosso momento Thunderstruck, vivido com diferentes episódios – uns mais sofridos, entre perdas e depressão, outros de reinvenção e de encontro de novos propósitos. A verdade é que nada voltou a ser o mesmo. Fenómenos como a great resignation e o quiet quitting vieram demonstrar que as pessoas estavam diferentes, que nós estamos diferentes. E enquanto isso, as empresas encontravam os seus “novos” modelos de trabalho brincando a um totobola de 1×2 – presencial, híbrido ou remoto – utilizando decisões para campanhas de comunicação, sem olhar verdadeiramente para o ecossistema e para a necessidade (e oportunidade) de transformar o todo e não apenas a parte.

Decidir o modelo de trabalho é muito mais do que decidir a localização, é trabalhar todo o ecossistema. E sei que estou sempre a insistir neste conceito, a enumerar a importância das decisões e a reforçar que não há modelos perfeitos, ou melhor dizendo, que todos podem ser perfeitos desde que sejam implementados nas várias vertentes de uma organização. Falo de tecnologia, de comunicação, de liderança, de bem-estar, de produtividade, de responsabilidade, de criatividade, de motivação, de engagement e sim, de localização. Falo da complexidade que se traduz numa empresa, na entrega de valor, na relação entre as pessoas, no tempo, no lucro, no sentimento de pertença e na responsabilidade com os stakeholders. Não há um caminho, mas há caminhos neste ecossistema.

O novo normal

Na transformação da forma de trabalhar o meu destaque vai para a tecnologia, aqui não “cheira a mofo”, muita coisa mudou (e para melhor) e ainda há oportunidade. A pandemia obrigou à adoção acelerada de ferramentas digitais que já não desapareceram e que foram integradas mesmo em empresas de menor dimensão. QR codes, reuniões à distância, faturação eletrónica são alguns exemplos de uma lista extensa que ganha um novo protagonista em 2023 – a Inteligência Artificial. A democratização e o acesso fácil a estas inovações são fundamentais para a implementação de qualquer modelo de trabalho e para a transformação de uma nova forma de trabalhar. A redução de tarefas repetitivas permite maior flexibilidade e competitividade, assim como potencia o conteúdo de trabalho para que se possa tornar mais interessante e até mais colaborativo, independentemente do modelo escolhido.

A tecnologia deixou de ser um luxo das grandes empresas para se tornar um verdadeiro commodity, aumentando a necessidade de aprendizagem ao longo da vida dos colaboradores, apresentando um verdadeiro portfólio de SaaS[2] para praticamente tudo, com modelos freemium[3] acessíveis a vários budgets.

Uma vez mais, o importante é decidir, fazer escolhas, implementar as ferramentas que vão suportar os objetivos de negócio e a forma de trabalhar das equipas, não seguir modas e, acima de tudo, ter o foco no resultado. Posso dar um exemplo real: numa equipa de suporte a vários países estava a ser utilizada uma ferramenta de gestão de tarefas com sprints de duas semanas e stand-ups semanais. Nenhum elemento desta equipa, nem mesmo o manager, tinha experiência em metodologia agile e por isso a utilização da tecnologia tornava-se um trabalho administrativo, demasiado descritivo e focado nas tarefas que cada um tinha de fazer, as reuniões acrescentavam pouco valor e não aumentava a colaboração, acabando cada elemento da equipa por seguir o modelo de planeamento mensal. Não existia uma vantagem real na utilização da solução e por isso a equipa mudou para um modelo mais adequado à sua forma de trabalhar, mesmo que menos trendy, mas em que a solução tecnológica aumentava a colaboração e comunicação, assim como permitia medir de forma mais eficaz os resultados. Em paralelo foi criado um projeto para a transformação em modelo agile com formação e alinhamento em sprints, combinando com a realidade das equipas de desenvolvimento de IT integrando ambos os serviços.

Este exemplo real é paradigmático ao demonstrar que a tecnologia por si só não faz a transformação, é sempre preciso um plano de adoção para que o potencial das ferramentas suporte a performance das equipas. E muitas empresas souberam fazer este caminho, transformando uma cultura focada na presença e assiduidade, na comunicação do momento que muitas vezes não incluía planeamento ou falhava na clareza da divisão de tarefas, para passarem para uma cultura alinhada por objetivos com a definição clara de responsabilidades, com momentos de acompanhamento e avaliação.

E é na adoção que reside o desafio. É nas lideranças e nas pessoas, na sua capacidade de abraçar uma nova forma de trabalhar – seja num modelo presencial, remoto ou híbrido – garantindo sempre o mesmo nível de acesso e conhecimento para todos os elementos da equipa.

Os mitos da nova forma de trabalhar

De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), das cerca de cinco milhões de pessoas empregadas em Portugal, mais de um quinto trabalhou a partir de casa (sempre ou pontualmente), no primeiro trimestre de 2024. Este valor representa um aumento de 11% face ao último trimestre de 2023, sendo que nem todos os modelos híbridos são iguais. Há quem o faça sempre e quem o faça regularmente. No total, 364 mil pessoas trabalharam regularmente à distância, mediante um sistema que concilia o trabalho presencial e em casa. No segundo trimestre de 2024, mais de um milhão de pessoas trabalharam em casa e, destas, cerca de 403 mil combinaram trabalho presencial com trabalho remoto. Trata-se do número mais elevado desde 2022.

Mesmo com o crescimento dos modelos de trabalho híbridos e remoto em Portugal, continuam a existir alguns mitos defendidos de forma entusiasta em conferências ou artigos de opinião, procurando criar uma imagem de procrastinação quando se trata de trabalho à distância, como se o presencial fosse a garantia da produtividade. Aqui ficam os cinco principais mitos associados às novas formas de trabalhar e como cada um deles pode ser destruído para que o “novo” seja mesmo “novo” e não apenas uma moda sem qualquer transformação:

    1. “Trabalhar a partir de casa é procrastinar”

Esta é a ideia de que a pessoa fica em casa para não trabalhar e consumir Netflix sem moderação ou ir para a praia se estiver calor. Esta desconfiança faz com que algumas empresas excluam as segundas e as sextas-feiras dos dias de trabalho remoto para garantir que não há fins-de-semana prolongados ou leva a que algumas chefias marquem as reuniões de equipa na primeira hora da manhã, para garantir que ninguém dorme até mais tarde.

Estas decisões de controlo são contrárias aos princípios de produtividade e de liderança, são decisões retrógradas que demonstram que o modelo híbrido foi implementado seguindo uma moda e não por convicção e transformação da cultura organizacional. Mas, procrastinar é uma decisão, e por isso também no modelo presencial temos o “corpo presente”, aquele que não entrega, mas que muitas vezes pode ser o primeiro a chegar e o último a sair. A única forma de combater a procrastinação é com a definição clara de objetivos e de prazos de entrega, com gestão de projetos e lideranças que possam compreender as razões que estão por detrás da decisão de procrastinar.

    2. “Os trabalhadores remotos não se encontram presencialmente”

Um dos argumentos (e válido) para o modelo presencial é “as pessoas precisam de pessoas, têm de estar juntas no escritório”. Somos animais sociais, precisamos uns dos outros e as relações contribuem não apenas para o nosso desenvolvimento pessoal, como impactam a performance, o engagement, a motivação e a criatividade. E claro que só viver entre ecrãs não é a mesma coisa, mas quem é que considera que um modelo remoto nunca inclui momentos presenciais? Que estas pessoas nunca vão estar juntas?

Este deve ser um princípio a considerar por todas as organizações, o remoto não pode ser a redução do custo de localização, deve ser sim a oportunidade da diversidade, da assincronia, da colaboração, mas também do momento em que as pessoas se conhecem e estão juntos para conviver, enquanto animais sociais, para trabalhar em projetos enquanto equipa, em que o fator presencial pode acelerar a execução. Este é um dos grandes desafios das empresas, em especial das que só recentemente começaram a aceitar trabalhadores 100% remotos. As políticas de restrições de viagens (os famosos travel bans) são um risco para o engagement com os trabalhadores à distância que deixam de ter a mesma oportunidade dos colegas que trabalham em modelo híbrido, aumentando o risco de redução de performance, motivação e engagement. Da mesma forma, é preciso garantir a equidade, por exemplo nas épocas festivas ou até em reuniões estratégicas que incluam almoço.

Reconheço o desafio, em especial quando as empresas podem ter na sua cultura os três modelos de localização, mas a transparência de políticas e a importância da comunicação das mesmas, com vista à igualdade de oportunidades, deve ser o fator de decisão.

    3. “Não é possível criar uma cultura empresarial à distância”

É possível, mas dá mais trabalho (o mito anterior já toca neste ponto). Sim, estou de acordo que a cultura no modelo presencial é mais fácil de ser trabalhada – ou pelo menos parece -, mas não é impossível criar e fomentar a cultura empresarial num modelo híbrido ou à distância desde que esteja na agenda. O que muitas vezes sucede, é que a cultura num modelo presencial vai acontecendo e no remoto as ligações têm de ser agendadas e não por acaso, e por isso são um desafio maior para as organizações, pois é preciso maior planeamento e intensidade reconhecendo o que carateriza a cultura da empresa e definindo uma estratégia para que vá ao encontro dos valores e do propósito da organização.

    4. “Não há verdadeira liderança nas equipas remotas”

A liderança não é um gabinete num escritório ou um título de função, e um bom líder não precisa de controlar horários. O seu papel, independentemente do modelo de trabalho, é gerir uma equipa, entregar resultados, suportar o desenvolvimento das suas pessoas, garantir que todos sabem o seu papel individualmente e na equipa e, no melhor cenário, inspirar as suas pessoas.

Liderar equipas remotas ou híbridas é mais difícil do que liderar equipas presenciais: o dia-a-dia alimenta e cria relações, cria proximidade e é possível observar comportamentos. No modelo híbrido existem momentos em que essa observação pode ser feita, e reuniões em que a empatia e a comunicação surgem de forma natural para garantir a criação desta relação. O maior desafio é mesmo no modelo remoto, em que o ecrã é a sala de reuniões e tem de ser também a máquina de café. Conseguir liderar à distância só é possível com uma cultura por objetivos, com clareza na função, com definição dos canais de comunicação e com hora marcada. É preciso agendar os momentos de equipa, de avaliação, de performance review mas também de teambuilding e de um simples café. É preciso dar para receber, ter a empatia e a disponibilidade, criar espaços em que o ecrã é esquecido para que se crie essa relação interpessoal. O líder remoto tem de ser ainda mais humano, porque não há relações criadas por coincidência e não há conversa de elevador.

    5. “A criatividade e a inovação não existem à distância”

É mais difícil, mas não é impossível. Há ferramentas digitais colaborativas que permitem que equipas híbridas e remotas tenham momentos de criatividade e de pura inovação… se o presencial pode acelerar os processos? Sim e não: pode ser mais confuso e menos organizado, mas pode também ser altamente produtivo. A criatividade e a inovação são processos que não dependem da localização para obter o sucesso, dependem sim do fator humano.

O poder da decisão

As novas formas de trabalhar ainda estão em evolução. Cada vez há mais empresas a quererem voltar ao modelo presencial por não conseguirem sentir as pessoas, assim como outros veem no remoto a nova oportunidade de terem verdadeiras máquinas espalhadas pelo mundo a produzir, em alguns casos em localizações low cost com alta qualidade, sem nunca proporcionar momentos ao vivo.

A nova forma de trabalhar tem de ser humana, não interessa se no escritório, se híbrido ou se remoto, tem de ser focada nas pessoas e de pessoas para pessoas, reconhecendo a sua complexidade, mas também a sua capacidade de entregar valor, de nos surpreender. É preciso acabar com os mitos de qualquer um dos modelos, reconhecer e trabalhar o ecossistema mantendo sempre as pessoas no centro da decisão.

 

[1] https://www.businessinsider.com/record-number-workers-quit-fourth-month-labor-shortage-delta-economy-2021-9

[2] Software as a service

[3] Soluções com opções gratuitas e com serviços premium

 

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