PME 5.0: ir para além dos números

Não vale de muito as PME terem dados se não os utilizarem. Qual é o valor dos dados que as PME não usam? Têm algum valor?
1.0: No início, (já) haviam dados
Se pensarmos nos diferentes choques tecnológicos que produziram alterações estruturais na forma como as empresas e os agentes económicos se comportam, produzem, consomem e interagem, podemos sistematizar duas recentes épocas como Senin et al. (2024)[1] referem no seu recente trabalho: a época da terceira revolução industrial (RI 3.0) onde as organizações adotaram metodologias de automação. Entretanto estaremos a viver uma quarta revolução industrial (RI 4.0), onde as organizações passaram de uma automação convencional para a incorporação de uma multiplicidade de tecnologias que permitem estratégias inteligentes de produção, digitalização de processos das empresas, e o livre fluxo de informação e comunicação ao longo das várias partes interessadas da cadeia de valor.
São múltiplos os estudos e as pesquisas científicas que referem que esta digitalização se tem mostrado uma ferramenta essencial para garantir a competitividade das Pequenas e Médias Empresas (PME) no mercado contemporâneo. No caso concreto das PME, o trabalho de Senin et al. (2024)1 destaca especificamente que tecnologias devem ser mais adequadas para PME para esta RI 4.0, destacando claramente a incorporação de tecnologias de análise de dados (Big Data Analytics) e cloud computing numa primeira fase, e posteriormente outras opções tecnológicas como realidade virtual (VR), realidade aumentada (AR) e outras.
Claramente, entre as tecnologias emergentes, a análise avançada de dados e a inteligência artificial (IA) destacam-se como pilares nesta evolução empresarial.
Mas as PME têm contextos específicos. Não dispõem dos recursos financeiros, humanos, técnicos ou logísticos que as grandes empresas dispõem. Em oposição, têm muitas vezes a vantagem de terem maior agilidade, flexibilidade, e mesmo capacidade de adaptação a novas situações. Como muitos gestores de PME referem, difícil é gerir com escassez de recursos (ou muitas vezes sem eles!).
Para além disso, desde sempre que existem dados! E provavelmente (e até 2025), temas como big data, análise avançada de dados, ciência de dados ou inteligência artificial, nunca estiveram tanto na agenda e nas bocas do mundo como hoje. Sobre os seus benefícios, os seus méritos, e inclusive todas as perspetivas futuras que esses instrumentos reservam para a sociedade, para as empresas, para o ambiente, para a ciência, e para todas as infinitas dimensões que constituem a nossa vida.
Toda esta popularidade foi acelerada pelo lançamento de ferramentas do que (hoje) se chama inteligência artificial generativa (em particular, do lançamento do ChatGPT). E é normal que existam picos de euforia. Isso é bom! Faz parte de qualquer processo da nossa civilização (e até da natureza humana). E tem um aspeto positivo: não sendo uma área nova, hoje a área de análise de dados é discutida como uma disciplina, que mais do que um somatório de episódios isolados num contexto empresarial, deve ser visto como um instrumento metódico, sistemático, e que deve ser discutido de forma organizada e corporativa.
As PME sempre trabalharam dados. São máquinas a trabalhar dados, e não gerem sem dados. Na verdade, mesmo as PME que não dispõem de práticas de análise avançada de dados ou de tecnologias para o efeito, mesmo inadvertidamente analisam dados. Guardam todos os sinais, números, telefonemas e contactos com clientes (e por aí fora), processam mentalmente toda essa informação, e criam um conjunto de conhecimento que está implícito e encerrado em cada um dos elementos da empresa.
A diferença não está na ausência de análise de dados, está na forma pouco metódica, sistemática, e organizada como as empresas o fazem. Embora as PME sejam essenciais para todas as economias, estão atrasadas na utilização da análise avançada de dados (Coleman et al., 2016)[2].
É neste contexto que é importante discutir a importância que estas ferramentas de análise de dados têm (ou não têm) para as PME, as barreiras enfrentadas pelas PME na sua adoção, os impactos gerados na performance empresarial, e saber o que devem as PME fazer.
2.0: A Importância da Análise Avançada de Dados e da IA na digitalização das PME
Tecnologias como a Análise Avançada de Dados e a IA permitem que as PME processem e interpretem os seus dados de forma sistemática, para obter informações preciosas. Quer descrevam estas o que se está a passar, quer permitam antecipar ocorrências ou comportamentos futuros, são tecnologias que têm o potencial para melhorar a eficiência operacional, otimizar a afetação de recursos, ou antecipar tendências do mercado. Por exemplo, ferramentas de análise preditiva ajudam as empresas a identificar e antecipar comportamentos de consumo, permitindo personalização e aumentando a fidelização do cliente, ou como a utilização de IA em processos de supply chain melhora a previsão de procura e reduz custos operacionais.
São múltiplos os casos de uso para as PME. Qualquer consulta a um motor de pesquisa pode identificar uma enorme variedade de aplicações em diferentes áreas funcionais. É assim que as PME podem implementar ferramentas de análise preditiva para melhorar sua eficiência operacional, reduzindo, por exemplo, os custos de transporte ao antecipar congestionamentos e otimizar rotas, ou utilizar IA para monitorar e prever padrões de consumo de energia e aumentar a eficiência energética.
Mas uma coisa é a utilidade que estas tecnologias têm na sua especificidade, outra é o papel que desempenham na digitalização das PME.
Sobre o papel que a análise de dados tem na digitalização das empresas, pode destacar-se o trabalho de Orero‑Blat et al. (2024)[3], que destacam várias descobertas, nomeadamente:
- Que a transformação digital tem um impacto positivo na performance das PME;
- No entanto (ao contrário do que muitos estudos apontam), o impacto da transformação digital na performance das empresas não é linear;
- Que este impacto ocorre através de uma sequência de estímulos impulsionados pela inovação e pela análise de big data;
- Que a análise de big data e a inovação têm assim um papel central como catalisadores do processo de transformação digital, melhorando consequentemente o desempenho;
- Que a análise de big data e a inovação servem como mediadores fundamentais, facilitando a reconfiguração de recursos que permitem às PME navegar as complexidades da transformação digital.
Na mesma orientação pode por exemplo ler-se o trabalho de Arroyabe et al. (2024)[4], que destaca igualmente a importância da digitalização e da IA e tecnologias de análise de dados andarem de braço dado, comprovando que as PME que adquirem competências digitais conseguem com menor esforço integrar IA nos seus processos e vice-versa, garantindo maior eficiência técnica.
Em síntese, a digitalização, per si, enquanto palavra vazia, não representa necessariamente uma vantagem para as PME. É um processo multifatorial que deve ser centrado na inovação, e onde as competências e capacidades de análise de dados desempenham um papel moderador fundamental para que a digitalização se possa refletir em impacto para as PME.
3.0: Barreiras à Adoção da Análise Avançada de Dados e da IA nas PME
Apesar das vantagens, muitas PME enfrentam desafios significativos para adotar estas tecnologias. Apesar de muitas serem intuitivas, é importante também sistematizar que forças impedem as PME de adotarem tecnologias e práticas que lhes permitam retirar valor, e de uma forma geral, monetizar dados.
Apesar de usarem diferentes modelos conceptuais, os estudos apresentam alguma consistência na identificação das barreiras enfrentadas pelas PME.
Nasrollahi et al (2021)[5] identificam 12 fatores que influenciam a adoção de analítica avançada nas PME (atributos percecionados, fatores organizacionais, utilidade, tecnologia, stakeholders, fatores financeiros, fatores de processos de dados, cultura, conhecimento técnico específico, ambiente externo e contexto, gestão, recursos humanos), sendo que os mais importantes são os fatores relacionados com stakeholders e fatores ambientais, a gestão, e fatores financeiros.
Já Babalghaith e Aljarallah (2024)[6] mostram a dependência da adoção de analítica avançada em função de três dimensões:
- Fatores tecnológicos (complexidade, compatibilidade, custo da adoção, risco de segurança);
- Fatores organizacionais (compromisso da gestão de topo, cultura orientada a dados, prontidão da organização);
- Fatores ambientais (pressão competitiva, contexto governamental, regulatório e legal, incerteza ambiental).
Neste último caso, são os fatores organizacionais que se revelam mais importantes para a adoção. Curiosamente (ou não), neste estudo, os autores não identificaram evidências da importância do custo da adoção como fator fundamental para que as PME adotem ferramentas e práticas de análise de dados. Tal efeito pode estar ligado à proliferação e democratização de ferramentas que têm reduzido o custo da adoção (por exemplo, muitas PME superam a barreira de recursos financeiros ao implementarem soluções de análise de dados baseadas em open-source). Mas, no essencial, os estudos são consistentes na demonstração de evidências de que os fatores financeiros não são a causa primeira da não adoção.
Outra sistematização interessante é trazida, por exemplo, por Justy et al. (2023)[7]. Neste caso, os autores separam entre as barreiras internas e externas, assim como os drivers internos e externos para a adoção de ferramentas e práticas de análise de dados nas organizações. No essencial, este estudo encontra evidência de que as barreiras internas (tecnologia, gestão, estratégia, cultura, competências, finanças, legais) são mais determinantes e provocam maior resistência do que as barreiras externas, enquanto os drivers externos (mercado, concorrência, contexto de crise) são mais fortes e mais impulsionadores que os drivers internos. Um estudo que destaca que a resistência está dentro das PME, e que os fatores de adoção são predominantemente externos, o que posiciona as PME numa postura mais reativa do que proactiva.
Já Maroufkhania et al. (2020)[8], haviam destacado fatores tecnológicos (vantagem relativa, compatibilidade, complexidade, incerteza e insegurança, possibilidade de avaliação, observabilidade), fatores organizacionais (apoio da gestão topo, prontidão organizacional), e fatores ambientais (pressão competitiva, apoio externo de fornecedores e parceiros, regulamentação). Neste estudo, diferentes fatores tecnológicos afetam de forma diferente a adoção de ferramentas e práticas de análise de dados entre as PME. Poder experimentar, observar e avaliar têm um impacto positivo na adoção. Da mesma forma, o envolvimento e apoio da gestão de topo e a existência de recursos organizacionais, influencia positivamente a adoção nas PME.
Poder-se-iam elencar variadíssimas fontes que, com sistematizações diferentes, identificam evidências consistentes e com as quais nos poderemos identificar facilmente.
Se o leitor está neste momento numa PME ou a gerir uma PME, consegue facilmente identificar que a perceção de complexidade, dificuldade ou mesmo risco associado à adoção de análise avançada de dados, o envolvimento da gestão, a cultura, a estratégia, os recursos financeiros, os recursos técnicos entre outros, são facilmente a realidade que muitas PME enfrentam.
De facto, a adoção de análise avançada de dados é multifatorial, e cada PME tem o seu contexto específico.
É natural resistirmos ao que desconhecemos, é por isso que a literacia de dados é uma competência crítica no contexto da transformação digital. O desconhecimento só se combate abrindo as portas das PME desta aprendizagem, desenvolvendo programas de literacia de dados corporativos que envolvam toda a organização.
Mas as PME vivem num contexto concorrencial específico, onde muitas vezes a dimensão e a ausência de escala fazem como que vivam na marginalidade de custos e receitas. Em suma, o processo de digitalização, impulsionado pelos dados e pela inovação, só faz sentido se tal mostrar impacto na performance das PME.
4.0: Impactos na Performance das PME na Adoção de Análise Avançada de Dados e IA
São também muitas as profecias de que a Análise Avançada de Dados e a IA geram impactos positivos em várias dimensões do desempenho empresarial. Na melhoria da eficiência operacional (por exemplo através de iniciativas de previsão de procura e otimização da distribuição), no aumento de receita (por exemplo na personalização e recomendação de produtos e serviços que aumenta taxas de conversão), na inovação e diferenciação (incorporando dados e IA nas ofertas para diferenciar e ganhar vantagens competitivas), na tomada de decisões mais assertivas (como o aumento da precisão e previsibilidade), entre outros.
Mas, uma vez mais, mais do que uma convicção, as evidências científicas também são consistentes no que diz respeito ao impacto que a adoção de análise avançada de dados e IA têm na performance das PME em particular.
Nasrollahi et al (2021)5, que anteriormente identificaram os 12 fatores para a adoção de análise avançada de dados e IA, mostram que estas ferramentas e práticas têm impacto significativo na performance operacional e na performance económica das PME. No entanto, não identificaram evidências de que essa adoção tenha impacto na performance social.
Da mesma forma, Babalghaith e Aljarallah (2024)6 encontram também evidência que a análise avançada e a IA têm um impacto significativo nas performances financeira, de mercado e operacional.
Também Maroufkhania et al. (2020)8, mostra que a adoção de análise avançada de dados e IA melhoraram a eficiência e a eficácia das PME, fundamentalmente por terem tornado as PME organizações com decisões mais fiáveis, de forma sistemática, fundadas em dados e ferramentas analíticas.
Conclusões similares sobre o impacto positivo na performance têm Orero‑Blat et al. (2024)3 e Arroyabe et al. (2024)4, assim como muitos outros.
Hoje é relativamente acessível às PME, por exemplo, implementar IA para gerir inventários, reduzir custos operacionais, ou adotarem ferramentas de IA para analisar sentimentos nos seus canais digitais e media sociais, ajustar campanhas de marketing com base no feedback dos consumidores, para promover o aumento de receitas. Mas a decisão de adotar estas práticas e ferramentas só existe com a liderança certa, com a cultura certa, com a estratégia certa, e com a reunião de todos os fatores internos para a adoção de analítica avançada e IA.
5.0. Recomendações para as PME
Trabalhos como Tang e Chaveesuk (2021)[9], que sugerem um framework conceptual para a adoção de análise avançada de dados e IA para PME, ou Bettoni et al. (2021)[10] que define 5 pilares para a adoção de IA nas PME (Digital e Smart Factory, Estratégia de Dados, Recursos Humanos, Estrutura Organizacional, Cultura Organizacional), sugerem um conjunto de medidas práticas para as PME adotarem ferramentas e práticas de análise avançada de dados e IA, nomeadamente:
- Literacia de Dados: desenvolver programas de desenvolvimento de competências técnicas e tecnológicas na organização, e promover uma cultura de dados;
- Identificar Parcerias Estratégicas: colaborar com fornecedores e parceiros especializados para conhecer as tecnologias mais atuais e as melhores práticas;
- Conhecer a Maturidade Analítica da PME: efetuar um diagnóstico analítico da PME com um dos múltiplos modelos de maturidade disponíveis (Analytic Processes Maturity Model, Analytics Maturity Quotient Framework, Blast Analytics Maturity, DAMM – Data Analytics Maturity Model for Associations, Delta Plus Model, Gartner’s Maturity Model for Data and Analytics, Logi Analytics Maturity Model, Online Analytics Maturity, SAS Analytics Maturity Scorecard, TDWI Analytics Maturity Model, etc);
- Definir uma Estratégia de Monetização de Dados: existem igualmente múltiplos frameworks, seja para monetização interna ou externa;
- Identificar e Priorizar casos de Uso e Aplicações;
- Definir o modelo orgânico adequado: pessoas, competências e capacidades, funções e responsabilidades.
Dados e números as PME sempre tiveram. Uma PME 5.0 é uma PME que vai para além dos números, que entende como a análise avançada de dados e a IA são uma peça incontornável neste choque tecnológico, e que a sua adoção, mais do que um somatório de iniciativas isoladas, deve ser encarada como um programa, estruturado, planeado e estratégico. É este comboio de competir através dos dados que as PME não podem perder.
[1] Senin, S. M. – Juhdi, N. H. – Omar, A. R. C. – Hashim, N. A. (2024) “A Systematic Review of Adaptation of IR 4.0 during COVID-19 Pandemic Among Global SMEs.”, Journal of Logistics, Informatics and Service Science 11(2): 61–83. https://doi.org/10.33168/JLISS.2024.0205.
[2] Coleman, S., Göb, R., Manco, G., Pievatolo, A., Tort-Martorell, X. and Reis, M.S. (2016), “How can SMEs benefit from big data? Challenges and a path forward”, Quality and Reliability Engineering International, Vol. 32 No. 6, pp. 2151-2164.
[3] Orero-Blat, M., Palacios-Marqués, D., Leal-Rodríguez, A.L. et al. (2024). “Beyond digital transformation: a multi-mixed methods study on big data analytics capabilities and innovation in enhancing organizational performance.”, Rev Manag Sci. https://doi.org/10.1007/s11846-024-00768-8
[4] Marta F. Arroyabe, Carlos F.A. Arranz, Ignacio Fernandez De Arroyabe, Juan Carlos Fernandez de Arroyabe (2024), “Analyzing AI adoption in European SMEs: A study of digital capabilities, innovation, and external environment”, Technology in Society, Volume 79, 2024, 102733, ISSN 0160-791X, https://doi.org/10.1016/j.techsoc.2024.102733.
[5] Nasrollahi, M., Ramezani, J., & Sadraei, M. (2021). “The Impact of Big Data Adoption on SMEs’ Performance”, Big Data and Cognitive Computing, 5(4), 68. https://doi.org/10.3390/bdcc5040068
[6] Babalghaith, R., Aljarallah, A. (2024). “Factors Affecting Big Data Analytics Adoption in Small and Medium Enterprises”, Inf Syst Front, https://doi.org/10.1007/s10796-024-10538-2
[7] Théo Justy, Estelle Pellegrin-Boucher, Denis Lescop, Julien Granata, Shivam Gupta (2023). “On the edge of Big Data: Drivers and barriers to data analytics adoption in SMEs”, Technovation, Volume 127, 102850, ISSN 0166-4972, https://doi.org/10.1016/j.technovation.2023.102850.
[8] Parisa Maroufkhania, Ming-Lang Tseng, Mohammad Iranmanesh, Wan Khairuzzaman Wan Ismail, Haliyana Khalid (2020). “Big data analytics adoption: Determinants and performances among small to medium-sized enterprises”, International Journal of Information Management, Volume 54, 102190, ISSN 0268-4012, https://doi.org/10.1016/j.ijinfomgt.2020.102190.
[9] W. Tang and S. Chaveesuk (2021). “Big Data Analytics System Adoption in SMEs of Manufacturing,” IEEE 6th International Conference on Computer and Communication Systems (ICCCS), Chengdu, China, pp. 28-32, doi: 10.1109/ICCCS52626.2021.9449100.
[10] Andrea Bettoni, Davide Matteri, Elias Montini, Bartłomiej Gładysz, Emanuele Carpanzano (2021). “An AI adoption model for SMEs: a conceptual framework”, IFAC-PapersOnLine, Volume 54, Issue 1, Pages 702-708, ISSN 2405-8963, https://doi.org/10.1016/j.ifacol.2021.08.082.